Porque mapear ações afirmativas para indígenas e quilombolas?

A presença indígena no ensino superior cresceu significativamente no novo milênio, passando de pouco mais de quatro mil indígenas universitários em 2000 para mais de 72 mil em 2019, de acordo com o censo da educação superior. As universidades públicas brasileiras têm desenvolvido diferentes programas de incentivo ao ingresso e/ou apoio à permanência que vão de cotas, vestibulares específicos, bolsas diferenciadas ou programas de formação adaptados no interior de cursos regulares.

Essas iniciativas destinam-se a indígenas, mas com frequência também a quilombolas, e por vezes a outros grupos de populações tradicionais. Há diversos pontos comuns nos processos históricos dessas populações e em seus status jurídicos, já que o Estado brasileiro reconhece o direito às terras que ocupam de forma tradicional e institui um sistema educacional diferenciado que, em ambos os casos, deve considerar e valorizar práticas e saberes locais. Esse enquadramento legal embasa o esforço que muitas universidades têm feito para diferenciar as ações afirmativas destinadas a indígenas e a quilombolas daquelas que se destinam à população negra.

Iniciativas assim já existem em praticamente metade das universidades públicas brasileiras, com diferentes desenhos e alcances. Não havia até hoje, no entanto, um mapeamento nacional dessas iniciativas.

Em 2023 foi lançado o ObAAP (www.obaap.com.br), Observatório das Ações Afirmativas na Pós-graduação, sob coordenação de Ana Venturini. Nosso esforço de mapeamento dialoga diretamente com essa iniciativa, trazendo, de forma complementar, dados dos cursos de Graduação e com foco em ações afirmativas dirigidas somente a indígenas e quilombolas.

Como foi realizado o levantamento?

Realizamos o levantamento a partir da análise de editais que regulam os processos seletivos para cursos de Graduação e de consultas aos sites das universidades. Foram analisados editais dos anos de 2021 e 2022, a partir dos quais reunimos informações sobre:

• a modalidade de afirmativa destinada a indígenas e/ou a quilombolas praticada pela universidade; o ano de início e a forma de criação dessas ações afirmativas;
• os documentos solicitados pela universidade para que os aprovados comprovem a identidade indígena ou quilombola autodeclarada;
• a abrangência geográfica do edital indicando se a universidade aceita indígenas e/ou quilombolas de todo o país, de outros países ou, ao contrário, se aceita somente (ou ainda prioritariamente) candidatos do estado ou região onde se localiza. No caso de indígenas, verificamos se a universidade restringe seu público a indígenas aldeados;
• os critérios de tipo escolaridade e de renda exigidos dos candidatos indígenas e quilombolas; o número de vagas destinadas especificamente a indígenas e a quilombolas e se elas se distribuem ou não por todos os cursos da universidade;
• a existência ou não de uma instância de acompanhamento desses grupos de estudantes e de monitoramento da política de ação afirmativa na universidade;
• a existência ou não de uma prova culturalmente adaptada destinada a esses grupos.

Nessa primeira etapa de trabalho foram incluídas as 110 universidades públicas brasileiras, federais e estaduais, conforme o recenseamento do Ministério da Educação (https://emec.mec.gov.br/). Na segunda etapa está prevista a inclusão de Institutos Federais e Centros Universitários. Além disso, foram contabilizados somente os cursos de Graduação regulares, ou seja, cursos que não são especificamente destinados a estudantes indígenas ou quilombolas. Deixamos, portanto, igualmente para uma próxima etapa as Licenciaturas Interculturais e outros cursos destinados exclusivamente a indígenas e/ou quilombolas.

A arte do Obiques foi criada por Nathî Cordeiro (@nathi.cordeiro), designer e estudante de arquitetura da Unicamp. As fotografias utilizadas são de Leonaldo de Carvalho Brandão, quilombola e doutorando em Engenharia Agrícola na Unicamp, e Gualoy Centurião, Guarani-Kaiowá, concluinte de ensino médio que está estudando para prestar Jornalismo. Ambos autorizaram seu uso no site do Obiques e materiais de divulgação associados. As fotografias foram tiradas respectivamente durante o I ENEKI (Encontro Nacional de Estudantes Kilombolas, Cavalcante - GO, 2018) e o IX ENEI (Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, Campinas, 2022).

Sugestões

Estamos abertos para receber sugestões, informações complementares ou indicações de correções! Caso você atue em alguma universidade listada ou conheça estudos sobre ela que tenham informações diferentes das que apresentamos, por favor, não hesite em escrever para ceape@unicamp.br.

Equipe

Chantal Medaets (docente, Faculdade de Educação, Unicamp)
Marina Ribeiro Romero (mestranda em Antropologia, Unicamp)
José Maurício Arruti (docente, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp)
Luiz Felipe Medina Hâncio (mestrando em Administração Pública, Unicamp)
Lucas Ferreira (funcionário da área de pesquisa, Faculdade de Educação, Unicamp)

Termos e precisões técnicas

AA: abreviação de ações afirmativas.

Modalidade de ações afirmativas: propomos aqui cinco categorias, i) em "vestibular indígena e/ou quilombola" estão classificados processos seletivos específicos, distintos de outros processos seletivos da mesma universidade, com exames organizados em outro dia daquele do processo seletivo geral ou regular, algumas vezes em locais distintos (ou mais locais) ou ainda com prova específica concebida para a ocasião (ver definição de “prova específica”, abaixo); ii) em “cotas específicas para indígenas e/ou quilombolas” reunimos processos seletivos nos quais há um número exato de vagas destinadas a indígenas e/ou quilombolas (as vagas não estão inseridas numa categoria englobante, como PPI – pretos, pardos e indígenas), no entanto, o processo seletivo não é separado, e sim o mesmo daquele de outros candidatos; iii) em “vagas suplementares específicas para indígenas e/ou quilombolas” seguimos a lógica da categoria anterior, há um número exato de vagas destinadas a indígenas e quilombolas e elas não estão inseridas numa categoria englobante como PPI, porém não se trata de uma porcentagem das vagas totais da universidade, e sim de vagas extras criadas para este fim. O processo seletivo nesse caso também não é específico e distinto do processo seletivo regular da universidade; iv) em “cotas étnico-raciais destinadas indistintamente a pretos, pardos e indígenas (modelo PPI)” estão as universidades que inserem indígenas na categoria englobante “PPI”, de modo que não há como verificar se as vagas são ocupadas efetivamente por indígenas; e por fim v) em “Não possui ação afirmativa étnico-racial”, estão as universidades estaduais que não implementaram tais programas.

Prova culturalmente adaptada: Consideramos a prova como culturalmente adaptada quando i) são abordados explicitamente temas referentes a contextos indígenas ou quilombolas; ii) no item "língua estrangeira" é oferecida a opção de uma língua indígena ou iii) os critérios de correção são diferentes daqueles de outros processos seletivos da mesma universidade e essa informação consta no edital do processo seletivo indígena e/ou quilombola.

Ano de início das ações afirmativas: consideramos como ano de início o ano efetivo de implementação da ação afirmativa e não o de aprovação da resolução ou Lei que rege seu funcionamento. Por exemplo, na Unicamp a resolução criando o Vestibular Indígena data de 2017, mas a primeira turma de estudantes indígenas ingressou em 2019. Indicamos então 2019 como ano de início das AA para indígenas na Unicamp. Fizemos uma exceção a essa regra no caso das universidades que adotam somente a Lei federal de cotas, de 2012, pois tornou-se frequente na literatura referir-se a 2012 como ano de início nesse caso. Ainda, quando a universidade adota ações afirmativas que englobam pretos, pardos e indígenas (por exemplo no Enem ou em alguma outra modalidade de ingresso) e, além disso, adota alguma política específica para indígenas ou quilombolas (como um vestibular indígena ou quilombola por exemplo), indicamos na data de início das AA somente a data deste último, ou seja, a data de início do processo específico.

Número de vagas: o número de vagas anuais para indígenas e/ou para quilombolas ou bem constava diretamente no edital consultado (edital de 2020 ou 2021) ou foi calculado a partir de informações do edital. Por exemplo, um edital afirma que duas vagas serão destinadas a indígenas em todos os cursos da universidade, verificamos então quantos cursos existem na universidade e multiplicamos o número de cursos por dois para obter o número de vagas. Quando a universidade utiliza o modelo PPI não é possível calcular o número de vagas específico para indígenas/quilombolas, pois o grupo étnico-racial engloba pretos, pardos e indígenas.

Documento comprobatório da autodeclaração de pertencimento étnico: todas as vezes que a autodeclaração é obrigatoriamente acompanhada de uma declaração assinada por lideranças, listamos apenas a segunda.

Banca de heteroidentificação: comissões de verificação de documentos não foram consideradas como bancas de heteroidentificação. Consideramos como banca de heteroidentificação processos que impliquem a presença do/a estudante na universidade ou o envio de foto ou vídeo de si mesmo/a para fins de comprovação da identidade.

No banco de dados, as universidades estão ordenadas por ordem alfabética.

Para citar informações do Obiques: https://doi.org/10.25824/redu/55WHP2